A caixa-preta dos peixes

O otólito de uma tainha fotografado com o uso de lupas na UFRRJ. Foto: Luiza Rocha

Debaixo d’água, todo peixe tem uma história. E boa parte dela fica armazenada na parte interna de seus ouvidos. Chamadas de otólitos, essas pequeninas estruturas de carbonato de cálcio têm sido um livro aberto para que cientistas entendam como vivem e se comportam diferentes tipos de peixes ao longo de sua existência. No Projeto de Apoio à Pesquisa Marinha e Pesqueira, várias iniciativas têm lançado mão desses miúdos cristais para obter dados sobre idade, crescimento, longevidade, migração e o ambiente onde vivem as espécies. 

“Ele funciona como se fosse uma caixa-preta do peixe”, define o professor Francisco Gerson Araújo, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Com a função de auxiliar no equilíbrio e na audição do animal, os otólitos crescem conforme os indivíduos: a cada ano de vida uma nova camada se forma, gerando uma imagem semelhante aos anéis de crescimento das árvores. E em cada um desses anéis, uma infinidade de informações químicas sobre o ambiente fica registrada como carimbo. Ao cruzá-las com dados sobre habitats e ecologia das espécies, por exemplo, é possível desvendar muita coisa. 

“Os otólitos absorvem determinados elementos químicos que podem indicar, por exemplo, o local onde aquele organismo nasceu, por onde ele transitou e se o ambiente onde ele vive – ou viveu – tem marcas de poluentes”, explica Araújo. “São informações importantíssimas para o manejo e gestão desses recursos”.

À frente da iniciativa Análises de otólitos e estoques pesqueiros, Araújo e sua equipe importaram o equipamento Laser Ablation para fazer a leitura desses dados. Por aqui, o aparelho é uma raridade: é o único em funcionamento no Brasil voltado para esse tipo de análise. Antes dele, os cientistas dependiam de parcerias com universidades estrangeiras para fazer a análise de amostras. Agora, a equipe já consegue identificar aqui mesmo padrões de movimentação e migração de algumas das principais espécies comerciais da costa fluminense – como a corvina, a tainha, a pescada e o robalo. 

Geralmente iniciando suas vidas em áreas mais protegidas, como baías e lagoas, os peixes costumam se deslocar entre esses ambientes e zonas costeiras ao longo de sua existência. “Se a gente sabe, por exemplo, que as corvinas nascem na Baía de Sepetiba e dali são ‘exportadas’ para a zona costeira do Rio, precisamos proteger aqueles berçários para garantir que seus estoques não sejam prejudicados”, diz Araújo. 

A análise de otólitos também vem jogando luz sobre o ciclo de vida das duas espécies de robalo (Centropomus parallelus e C. undecimalis) e também da perumbeba (ou piraúna) (Pogonias cromis), que têm grande importância comercial nas lagoas costeiras de Maricá, Saquarema, Araruama e Piratininga-Itaipu, ao leste do estado do Rio de Janeiro. No projeto Sistemas Lagunares, pesquisadores vêm fazendo capturas de indivíduos jovens e adultos para conhecer os diferentes cenários de uso dos ambientes, em cada fase de vida dos animais. 

“Além de identificar a idade dos indivíduos, nós conseguimos entender a história de vida deles, como usam as lagoas e de que forma transitam entre o os ambientes marinho e estuarino”, explica o pesquisador que coordena a iniciativa, Marcus Rodrigues, da Universidade Federal Fluminense (UFF). 

Ao cruzar essas análises com outros dados, os cientistas conseguem identificar, por exemplo, locais chave de desova e de reprodução – fundamental para apontar áreas prioritárias de conservação. “De acordo com a história do ciclo de vida dessas populações, podemos indicar aos gestores públicos o manejo mais adequado para as espécies. Então,  nada mais somos do que contadores de histórias. Não de gente: de peixes”, brinca. 

E se depender das informações registradas nos otólitos, os pequenos cristais, história é o que não falta. Trabalhando com a sardinha-verdadeira há mais de duas décadas, o pesquisador Paulo Ricardo Schwingel, da Universidade do Vale do Itajaí (Univali), em Santa Catarina, tem desvendado novos capítulos sobre as velhas conhecidas, por meio do Projeto Sardinha. 

Já faz alguns anos que cientistas desconfiam da existência de duas populações distintas da espécie: uma em Santa Catarina, outra no Rio de Janeiro. As análises do formato dos otólitos estão ajudando a desvendar este mistério. “Já temos alguns indicadores de que existem duas populações. Se isso se confirmar, uma delas pode ter sua gestão diferenciada da outra”, afirma.

Uma boa gestão, aliás, é o objetivo final de todos os esforços que o projeto vem fazendo para conhecer da melhor forma possível as características da sardinha-verdadeira e os ambientes onde ela vive. Schwingel chama atenção para o fato de que, no Brasil, a falta de dados científicos sobre as espécies costuma, com frequência, empurrá-las para o colapso dos estoques. Uma preocupação ainda mais séria quando se trata do principal recurso pesqueiro do Brasil. 

Nos últimos três anos, a indústria de enlatamento que faz o processamento da sardinha-verdadeira contou com a captura de 20 mil toneladas da espécie. Normalmente, o número é de 120 mil toneladas. Segundo Schwingel, o declínio tem a ver com uma má gestão pesqueira combinada principalmente com condições climáticas desfavoráveis em períodos de desova. 

Os sinais de alterações climáticas na área de distribuição da sardinha-verdadeira já vêm sendo percebidos pela comunidade científica. E os estudos com otólitos estão possibilitando um novo avanço nesse sentido: a primeira coleta do cristal feita com a espécie data de 1998. Isso significa que, de lá para cá, será possível resgatar uma série histórica com informações sobre o clima registradas na pequena estrutura dos peixes. 

“Esse tipo de estudo é muito inovador. Todos os parâmetros que estamos levantando vão permitir o entendimento não só das sardinhas mas da pesca como um todo no estado do Rio de Janeiro, de maneira ampla e complexa”, afirma Schwingel. “O projeto é um marco histórico: vai mudar a história da pesquisa pesqueira por aqui. E espero que seja apenas um embrião para que os estudos continuem”. 

 

Texto originalmente produzido pelo jornalista Bernardo Camara para a newsletter “Linhas do Mar” para divulgação do Projeto de Apoio à Pesquisa Marinha e Pesqueira e do Projeto Conservação da Toninha.

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