Quando um livro nasce da fala de quem lembra, sente e vive, ele vira abrigo. Foi assim com “Narradores das Estrelas, Histórias de Ilha Grande”, obra que costura 24 relatos de vida de moradores das comunidades da Enseada das Estrelas no Rio de Janeiro. Dentre elas, está a de Sebastião Nascimento dos Santos, o Cadiquinho, que ajudou a erguer um dos primeiros restaurantes do Saco do Céu, o Alvorada da Ilha, e compartilha curiosidades sobre a origem dos nomes que figuram a região.
“Esse nome tem uma razão. Antigamente, o Saco do Céu era esconderijo de piratas. As caravelas se refugiavam aqui”, relembra.
Lançado pela Associação de Moradores e Pescadores da Enseada das Estrelas (AMPEE), o livro é fruto do avanço da iniciativa “Enseada das Estrelas e suas Raízes”, apoiada pelo Projeto Educação Ambiental, entre outubro de 2022 e maio de 2024, sob gestão do Fundo Brasileiro para a Biodiversidade (FUNBIO).
O resultado, que também inclui exemplares impressos do livro para distribuição à comunidade, materializa a história da região norte de Ilha Grande. Para Jaísa Assis, coordenadora da AMPEE, o livro é resultado de escuta profunda. “Caminhamos por mares, rios, pedras e árvores, mas só entramos verdadeiramente nesses lugares ao ouvir as narrativas de quem os habita. São memórias do passado e do presente, conselhos para o futuro”, reflete.
As vidas que habitam a Ilha Grande
Assim como Enseadas das Estrelas recebeu esse nome devido à abundância de estrelas do mar na região, os pratos servidos nos restaurantes da comunidade registram a conexão dos moradores com a biodiversidade.
Cadiquinho, um dos protagonistas da culinária caiçara, é especialista no preparo do tradicional peixe com banana. “[…] se chama azul-marinho. É o peixe cortado com faca de ferro, a banana descascada na hora… fica azul-marinho mesmo. Não precisa de muito tempero: só cebola, alho e tomate”, ensina.
Tamanha naturalidade para manejar os recursos da culinária local, Cadiquinho viu no turismo gastronômico uma oportunidade. Além do Alvorada da Ilha, ele também é proprietário do Refúgio das Caravelas, restaurante de valor histórico e afetivo. “Muita, muita gente… cabiam 80 pessoas. Tinha dia que a gente não dava conta de atender todo mundo.” relembra o empresário sobre o crescimento do turismo local.
Paulo de Brito, morador da Praia do Fora, também lembra a evolução dos restaurantes na Ilha Grande. “O primeiro aqui foi o da minha irmã. Depois vieram o do Cadiquinho e o da Maria Lúcia, depois o do Damásio. A partir daí, foi se espalhando até o Japariz [praia a 2 horas do Saco do Céu]. Mas fomos nós que começamos tudo isso. Já faz uns trinta e cinco anos”, resume.
As vozes femininas que constroem os caminhos
Conduzido por 11 mulheres, o projeto do livro reuniu relatos de moradores das comunidades da Ilha Grande: Freguesia de Santana, Saco do Céu e Praia do Fora. O “Mapa de Narradores” que ilustra a publicação, trilha caminhos que se entrelaçam as memórias de infâncias na roça, saberes passados no fogão e curas à base de folhas e fé dos moradores.
Quem compartilha esses saberes ancestrais com a comunidade é Dona Sidineia Jesus de Andrade Garcia, também moradora de Saco do Céu. De ancestralidade indígena e reconhecida como curandeira da comunidade, oferece rezas e receitas para quem busca alívio espiritual e físico. “Cada reza é um caminho. Tem reza de cobreiro, de espinhela caída… Ventre caído são três etapas: umbigo, cadeiras e pezinho. O que cura não é a minha fé, é a fé de quem me procura”, afirma.
Essas histórias não estão nos guias turísticos. Elas moram nos gestos, nas receitas, nos causos contados à beira-mar e exaltam o poder do Turismo de Base Comunitária, muito presente nessa comunidades. “A produção foi inspirada em oficinas com foco em cartografia social e principais pontos relacionados ao tema, essenciais para planejar sua aplicação dentro de comunidades”, explica Jaísa Assis. Assim, cada ponto de partida ou chegada guarda o valor da ancestralidade local e formação de comunidades pesqueiras tradicionais.
Outra convidada que compartilhou sua vivência foi Marilene dos Santos Raimundo, a Mané. Uma cozinheira talentosa, famosa por seu camarão com fruta-pão. Ela relembra com emoção sua infância e trajetória de vida. “Nasci em 17 de março, mas fui registrada só em 7 de setembro. Trabalhava na roça com meus pais e em casa também. Plantava feijão, mandioca, banana, café, colhia milho… Mandioca era muito, a gente fazia farinha. Hoje ninguém planta mais nada”, ressalta.
As dificuldades enfrentadas na busca por educação também estão presentes no livro. Lindalva Nascimento dos Santos, pescadora aposentada conhecida como Dalvinha, recorda como ia à escola na 4ª série carregando o material em sacos de arroz ou de doces – seus preferidos, por serem coloridos. “Aquele saco de doce era uma alegria”, lembra com carinho.
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