Pescado pela pesca

Setenta anos de vida e pelo menos 62 de pesca. Natural de São Gonçalo, no Rio de Janeiro, José Carlos Max Mendes Sobral mergulhou no universo pesqueiro por um acaso da vida. E não deixou mais a atividade de lado. Atual presidente da Associação de Trabalhadores do Mar da Boa Viagem (TAMBOA), em Niterói, celebra as recentes conquistas da comunidade que representa: “Hoje temos tudo que nunca tivemos”, afirma.  

Barcos, motores, câmara fria, máquina de gelo e uma sede alugada são alguns exemplos dos avanços que a TAMBOA alcançou nos últimos anos. Com apenas três anos de existência, a associação nasceu da iniciativa Pesca Solidária, do Projeto Educação Ambiental, que apoiou financeiramente a formalização de quatro associações de Niterói e São Gonçalo, com assessoria jurídica e administrativa, além do investimento em infraestrutura e capacitações para os trabalhadores.

“Vários políticos já vieram aqui em época de eleições prometendo ajudar nossa comunidade, mas nunca fizeram nada, de fato. A gente já estava desacreditado, mas agora muita coisa vem mudando”, diz José Carlos, que é conhecido em seu território como Botinha.

Os trabalhadores da TAMBOA são, em sua maioria, moradores do Morro do Palácio, que fica próximo à Praia de Boa Viagem e ao famoso Museu de Arte Contemporânea (MAC) de Niterói. É da favela, portanto, que pescadores e marisqueiros descem diariamente com seus equipamentos para tirar o sustento do mar. E mesmo vivendo ali há décadas, já enfrentaram inúmeros episódios de preconceito e discriminação por habitarem uma região que foi se transformando em uma das mais luxuosas da cidade.

“Tem muita repressão do poder público, que bate no pessoal, quebra isopor. Nós moramos no morro e queremos o direito de trabalhar dignamente”, diz Botinha. Segundo ele, a formalização da TAMBOA foi um marco também nesse aspecto: “A associação trouxe um reconhecimento que a gente não tinha antes. Fez a prefeitura e os órgãos enxergarem que a gente existe mesmo”, diz.

Prova disso é que no dia 19 de setembro de 2023 a prefeitura de Niterói publicou um decreto histórico reconhecendo os pescadores e marisqueiros da Praia de Boa Viagem como populações tradicionais daquele território. “Finalmente a gente se tornou visível”, diz o presidente da TAMBOA.

 

Reviravolta

Antes de ir morar no Morro do Palácio, José Carlos Sobral tinha uma vida bem diferente. Sua mãe era dona de um salão de beleza e o pai era formado em Letras e Contabilidade, professor universitário e fluente em seis idiomas. De São Gonçalo, a família se mudou para uma das melhores casas do bairro de Boa Viagem, próximo à praia de mesmo nome, em Niterói.

Ainda criança, era ali naquelas areias que José Carlos caminhava todos os dias por recomendação médica: “Eu tinha o pé ‘espalhado’, um para lá e outro para cá. Comecei a usar bota ortopédica com 1 ano de idade, e o médico disse que eu precisava andar na praia como parte do tratamento”, explica. Assim ficou conhecido como Botinha.

“Eu tinha escola, tinha babá, tinha tudo”, relembra. “Mas aos 8 anos de idade, meu pai – que era muito conservador – me pegou fumando em uma festa e me botou para fora de casa”. Desolado, Botinha mais uma vez foi parar na praia. E acabou acolhido pelos pescadores que trabalhavam ali: quando deu por si, já estava morando na casa dos novos amigos, no Morro do Palácio, e aprendendo tudo sobre pesca.

Dali em diante, continuou voltando diariamente à praia de Boa Viagem. Mas dessa vez, como pescador. “Aprendi tudo com os melhores pescadores de Niterói, e já rodei o estado do Rio todinho com eles”, diz Botinha, que nunca abandonou os estudos e já trabalhou em inúmeros empregos, mas sempre os conciliando com a atividade pesqueira.

No último ano, porém, ele precisou dar uma pausa na pesca por conta de uma forte infecção urinária que lhe rendeu alguns dias de internação no hospital. Está há quase 1 ano sem jogar as redes no mar. Mas nem por isso abandonou de vez a atividade: continua firme tocando os compromissos da TAMBOA. E tem grandes aspirações para a comunidade que lhe acolheu quando ainda era um menino.

“Todo dia tem coisa para fazer na associação: é levar documentação de barco, é fazer reunião com defensoria pública, é ver as obras na sede…”, lista ele. “Eu estou cansado, mas não largo o osso. Minha perspectiva é que a TAMBOA ainda suba muito, e que a gente seja reconhecido mundialmente”, diz Botinha. 

Imagem: reprodução TAMBOA